Marguerite Duras, pseudônimo de Marguerite Donnadieu (Saigon, atual Cidade de Ho Chi Minh, 4 de abril de 1914 — Paris, 3 de março de 1996) foi uma romancista, novelista, roteirista, poetisa, diretora de cinema e dramaturga francesa, sendo considerada uma das principais vozes femininas da literatura do Século XX na Europa.[1]
[21:29, 02/04/2020] Spin Participante: A solidão também quer dizer isso: ou a morte, ou o livro. Mas antes de tudo quer dizer álcool. Quer dizer uísque. Até agora, nunca fui capaz, nunca mesmo, realmente nunca, ou talvez fosse preciso procurar bem longe... nunca fui capaz de começar um livro sem terminar. Nunca fiz um livro que não fosse minha razão de ser na hora em que está sendo escrito, e isso vale para qualquer livro. E em toda parte. Em todas as estações do ano. Essa paixão, eu a descobri aqui em Yvelines, nesta casa. Eu tinha afinal uma casa onde me esconder para escrever livros. Queria viver nessa casa. Para que? Começou desse jeito, como uma brincadeira. Talvez escrever, disse a mim mesmo, quem sabe eu sou capaz? Já havia começado livros que deixara de lado. Esquecera até os títulos. Le Vice-cônsul, não. Eu não o abandonei, penso nele muitas vezes. Em Lol V. Stein não penso mais. Ninguém pode conhece-la, L. V. S., nem vocês nem eu. E mesmo aquilo que Lacan disse a respeito do livro, eu nunca cheguei a entender direito. Lacan me deixava atordoada. E aquela sua frase: “Ela não deve saber que escreve, nem aquilo que escreve. Porque ela se perderia. E isso seria uma catástrofe. ” Esta frase tornou-se, para mim, uma espécie de identidade de princípio, um “direito de dizer” totalmente ignorado pelas mulheres.
Achar-se em um buraco, no fundo de um buraco, numa solidão quase total, e descobrir que só a escrita pode nos salvar. Achar-se sem assunto para o livro, sem a menor ideia do livro significa achar-se, descobrir-se, diante de um livro. Lima imensidão vazia. Um livro eventual. Diante de nada. Diante de algo semelhante a uma escrita viva e nua, algo terrível, terrível de ser subjugado. Acho que a pessoa que escreve não tem a ideia de um livro, tem as mãos vazias, a mente vazia, e dessa aventura do livro ela conhece apenas a escrita seca e nua, sem futuro, sem eco, distante, com suas regras de ouro,
elementares: a ortografia, o sentido.[..]
Chega um momento na vida, e acho que isso e fatal, do qual não se pode escapar, no qual tudo e posto em dúvida: o casamento, os amigos, sobretudo os amigos do casal. Não as crianças. As crianças jamais são colocadas em questão. E nossa dúvida cresce a nossa volta. Essa dúvida existe sozinha, e a duvida da solidão. Nasce daí, da solidão. Já se pode nomear a palavra. Acho que muita gente não d capaz de suportar isso que estou dizendo, fugiriam. Talvez este seja o motivo por que todos os homens não são escritores. Sim. Esta e a diferença. Está é a verdade. Nada além disso. A dúvida e escrever. Portanto, e também o escritor. E com o escritor o mundo inteiro escreve. Sempre se soube isso.
Também acho que sem esta dúvida primordial sobre o gesto da escrita não existe solidão. Ninguém jamais escreveu a duas vozes. Foi possível cantar as duas vozes, e também tocar música, e jogar tênis, mas escrever não. Jamais. De saída, fiz livros chamados de políticos. O primeiro foi Abahn, Sabana, David, um dos que me são mais caros. Creio que isso e um detalhe, o fato de um livro ser mais ou menos difícil de guiar do que é a vida comum. A dificuldade e uma coisa que simplesmente existe. Um livro e difícil de guiar, na direção do leitor, na direção da sua leitura. Se eu não tivesse escrito, teria me tornado uma alcoólatra incurável. Trata-se de um estado prático, achar-se perdido sem poder mais escrever... É aí que se bebe. A partir do momento em que se está perdido e que não se tem mais o que escrever, mais o que perder, aí é que se escreve. Ao passo que o livro está ali, e grita, exige ser terminado, exige que se escreva. A pessoa se vê obrigada a se colocar a seu serviço. É impossível escapar de um livro, antes que ele esteja afinal escrito — ou seja: sozinho e livre de você que o escreveu. É tão insuportável quanto um crime. Não acredito nas pessoas que dizem: “Rasguei meu manuscrito, joguei tudo fora. ” Não acredito nisso. Ou o que estava escrito não existia para os outros, ou não era um livro. E sempre se sabe quando não é um livro. Se chegara um dia a ser um livro, não, isso nunca se sabe. Nunca.
Quando ia me deitar, cobria o rosto. Eu tinha pouco de mim mesma. Não sei como não sei por que. E por isso bebia álcool antes de dormir. Para me esquecer de mim. Isso passa num instante pelo sangue, e depois vem o sono. A solidão alcoólica e angustiante. O coração, sim, é isso. De repente ele começa a bater ligeiro demais.
Tudo escrevia quando eu escrevia na casa. A escrita estava por todo lado. E quando via os amigos, as vezes mal os reconhecia. Houve muitos anos assim, difíceis, para mim, dez anos talvez, foi quanto durou. E quando os amigos, mesmo os mais queridos, vinham me ver, também era terrível. Não sabiam nada de mim: me queriam bem e vinham por gentileza, acreditando que me faziam bem. E o mais estranho era que eu não pensava em nada disso.
Isso torna a escrita selvagem. Vai-se ao encontro de uma selvageria anterior a vida. E sempre a reconhecemos, e aquela das florestas, tão antiga quanto o tempo. O medo de tudo, algo distinto e ao mesmo tempo inseparável da própria vida. Encarniçado. Não se pode escrever sem a força do corpo. E preciso ser mais forte do que si mesmo para abordar a escrita. E uma coisa gozada, sim. Não e apenas a escrita, o escrito, e o grito das feras noturnas, de todos, de você e eu, os gritos dos cães. É a vulgaridade maciça, desesperadora, da sociedade. A dor, também Cristo e Moises e os faraós e todos os judeus e todas as crianças judias, e é também a bondade mais violenta. Sempre, acredito nisso.
A solidão também quer dizer isso: ou a morte, ou o livro. Mas antes de tudo quer dizer álcool. Quer dizer uísque. Até agora, nunca fui capaz, nunca mesmo, realmente nunca, ou talvez fosse preciso procurar bem longe... nunca fui capaz de começar um livro sem terminar. Nunca fiz um livro que não fosse minha razão de ser na hora em que está sendo escrito, e isso vale para qualquer livro. E em toda parte. Em todas as estações do ano. Essa paixão, eu a descobri aqui em Yvelines, nesta casa. Eu tinha afinal uma casa onde me esconder para escrever livros. Queria viver nessa casa. Para que? Começou desse jeito, como uma brincadeira. Talvez escrever, disse a mim mesmo, quem sabe eu sou capaz? Já havia começado livros que deixara de lado. Esquecera até os títulos. Le Vice-cônsul, não. Eu não o abandonei, penso nele muitas vezes. Em Lol V. Stein não penso mais. Ninguém pode conhece-la, L. V. S., nem vocês nem eu. E mesmo aquilo que Lacan disse a respeito do livro, eu nunca cheguei a entender direito. Lacan me deixava atordoada. E aquela sua frase: “Ela não deve saber que escreve, nem aquilo que escreve. Porque ela se perderia. E isso seria uma catástrofe. ” Esta frase tornou-se, para mim, uma espécie de identidade de princípio, um “direito de dizer” totalmente ignorado pelas mulheres.
Achar-se em um buraco, no fundo de um buraco, numa solidão quase total, e descobrir que só a escrita pode nos salvar. Achar-se sem assunto para o livro, sem a menor ideia do livro significa achar-se, descobrir-se, diante de um livro. Lima imensidão vazia. Um livro eventual. Diante de nada. Diante de algo semelhante a uma escrita viva e nua, algo terrível, terrível de ser subjugado. Acho que a pessoa que escreve não tem a ideia de um livro, tem as mãos vazias, a mente vazia, e dessa aventura do livro ela conhece apenas a escrita seca e nua, sem futuro, sem eco, distante, com suas regras de ouro, elementares: a ortografia, o sentido.
[..]
Chega um momento na vida, e acho que isso e fatal, do qual não se pode escapar, no qual tudo e posto em dúvida: o casamento, os amigos, sobretudo os amigos do casal. Não as crianças. As crianças jamais são colocadas em questão. E nossa dúvida cresce a nossa volta. Essa dúvida existe sozinha, e a duvida da solidão. Nasce daí, da solidão. Já se pode nomear a palavra. Acho que muita gente não d capaz de suportar isso que estou dizendo, fugiriam. Talvez este seja o motivo por que todos os homens não são escritores. Sim. Esta e a diferença. Está é a verdade. Nada além disso. A dúvida e escrever. Portanto, e também o escritor. E com o escritor o mundo inteiro escreve. Sempre se soube isso.
Também acho que sem esta dúvida primordial sobre o gesto da escrita não existe solidão. Ninguém jamais escreveu a duas vozes. Foi possível cantar as duas vozes, e também tocar música, e jogar tênis, mas escrever não. Jamais. De saída, fiz livros chamados de políticos. O primeiro foi Abahn, Sabana, David, um dos que me são mais caros. Creio que isso e um detalhe, o fato de um livro ser mais ou menos difícil de guiar do que é a vida comum. A dificuldade e uma coisa que simplesmente existe. Um livro e difícil de guiar, na direção do leitor, na direção da sua leitura. Se eu não tivesse escrito, teria me tornado uma alcoólatra incurável. Trata-se de um estado prático, achar-se perdido sem poder mais escrever... É aí que se bebe. A partir do momento em que se está perdido e que não se tem mais o que escrever, mais o que perder, aí é que se escreve. Ao passo que o livro está ali, e grita, exige ser terminado, exige que se escreva. A pessoa se vê obrigada a se colocar a seu serviço. É impossível escapar de um livro, antes que ele esteja afinal escrito — ou seja: sozinho e livre de você que o escreveu. É tão insuportável quanto um crime. Não acredito nas pessoas que dizem: “Rasguei meu manuscrito, joguei tudo fora. ” Não acredito nisso. Ou o que estava escrito não existia para os outros, ou não era um livro. E sempre se sabe quando não é um livro. Se chegara um dia a ser um livro, não, isso nunca se sabe. Nunca.
Quando ia me deitar, cobria o rosto. Eu tinha pouco de mim mesma. Não sei como não sei por que. E por isso bebia álcool antes de dormir. Para me esquecer de mim. Isso passa num instante pelo sangue, e depois vem o sono. A solidão alcoólica e angustiante. O coração, sim, é isso. De repente ele começa a bater ligeiro demais.
Tudo escrevia quando eu escrevia na casa. A escrita estava por todo lado. E quando via os amigos, as vezes mal os reconhecia. Houve muitos anos assim, difíceis, para mim, dez anos talvez, foi quanto durou. E quando os amigos, mesmo os mais queridos, vinham me ver, também era terrível. Não sabiam nada de mim: me queriam bem e vinham por gentileza, acreditando que me faziam bem. E o mais estranho era que eu não pensava em nada disso.
Isso torna a escrita selvagem. Vai-se ao encontro de uma selvageria anterior a vida. E sempre a reconhecemos, e aquela das florestas, tão antiga quanto o tempo. O medo de tudo, algo distinto e ao mesmo tempo inseparável da própria vida. Encarniçado. Não se pode escrever sem a força do corpo. E preciso ser mais forte do que si mesmo para abordar a escrita. E uma coisa gozada, sim. Não e apenas a escrita, o escrito, e o grito das feras noturnas, de todos, de você e eu, os gritos dos cães. É a vulgaridade maciça, desesperadora, da sociedade. A dor, também Cristo e Moises e os faraós e todos os judeus e todas as crianças judias, e é também a bondade mais violenta. Sempre, acredito nisso.
[21:30, 02/04/2020] Spin Participante: Marguerite duras
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